Geography at the empire´s last years
CRISTINA PESSANHA MARY
Departamento de Geografia – UFF
RESUMO: Com o presente artigo busca-se compreender o significado da geografia nos últimos anos do Império. Para tal,
concentramos nossa atenção no funcionamento da Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil, na sua composição
social e, sobretudo, na análise do periódico editado por essa filial. Durante os anos em que circulou, entre 1881 e 1886, e
acompanhando as sucessivas diretorias da Seção, a linha editorial da Revista da Sociedade de Geografia de Lisboa no
Brasil alterou-se ao sabor de perspectivas diferenciadas para a geografia, dentre elas, a aspiração portuguesa de engajar o
Brasil nas disputas pelo continente africano. Todavia, a nova conjuntura política republicana terminou por inviabilizar o
projeto luso de um Brasil como continuidade ibérica, esvaziando de sentido a própria Seção.
Palavras-chaves: geografia; revista de geografia; significado da geografia.
ABSTRACT: This paper is pursuing the meaning of geography throughout the empire’s last years. To achieve that we
focused both on the performance of the Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil concerning its social structure,
and, particularly on the analysis of the periodicals published by this branch. From 1881 to 1886, the span of its distribution
and, along with the successives Section’s board of directors, one can notice that the editorial profile of the Revista da Seção
da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil, has experienced a change, led by differents perspectives for geography,
among them, the Portuguese aspiration to involved
circumstances, however, ended up by thwarting the Portuguese project where
voiding therefore the very role of the Section.
Key words: geography society; geography magazine; meaning of geography.
Introdução
Este artigo se constitui em contribuição ao estudo da geografia no Brasil de fins do Império. Concentramos
nossa atenção na Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil, procurando avaliar
seu significado, desde sua criação, em 1878, até 1888, quando se obteve notícia de sua última diretoria.
Tal proposta, aparentemente simples, ganhou ares de intrincada trama, quando focalizamos o Rio
de Janeiro na década de 1880. Naquele momento, a cidade parecia respirar geografia, abrigando, além
da Seção, mais dois institutos similares, ambos carregando em seus nomes a denominação “geografia”,
a saber, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, e a Sociedade de Geografia
do Rio de Janeiro1 (SGRJ), de 1883.
Movimentando esse quadro, a profunda cisão no interior da própria Seção da Sociedade de Geografia
de Lisboa no Brasil, em 1881, quando um grupo abandonou a associação, inconformado com o
veto de Lisboa à tentativa de transformação da própria Seção em outro grêmio, de cunho nacional.
O interesse pela geografia naquele período não era incomum. Nesse último quartel do século
XIX, inúmeras sociedades geográficas, como os institutos da Corte, animavam as capitais européias,
ganhando força também na América Latina. Desde a década de 1960, estudos realizados sobre institutos
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como os de Paris, Londres, Espanha, na sua maioria, apontaram a sua funcionalidade no quadro das
ambições expansionistas dos Estados nacionais europeus2.
Esse foi o caso da própria matriz da Seção, a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL)3. Tal organização,
criada em 1875, por um grupo de intelectuais, esteve à testa do movimento colonialista
português, quando não se mediram esforços em prol da manutenção dos territórios africanos, percebidos
como garantia para um futuro de grandeza para a nação portuguesa4.
A política colonial, entretanto, não explica a existência desses estabelecimentos em áreas como a
América Latina. Tomá-los apenas como agentes do imperialismo seria desconhecer o seu papel na
formação de identidades nacionais das ex-colônias.
Pesquisas voltadas para os institutos de geografia da América Latina salientaram o seu peso nas
políticas de cunho nacional. Assim, Leôncio Lópes-Ocón5, ao comparar os institutos do gênero no
Peru, Bolívia, México, Costa Rica e Argentina, mostrou sua importância como instrumentos de organização
desses espaços nacionais.
No Brasil, é voz corrente nas ciências sociais o papel da história e da antropologia na composição
de um rosto para a nação. Nos limites da realidade brasileira, a ligação entre a história e a construção
da nacionalidade não escapou aos que se debruçaram sobre o IHGB6.
Entretanto, acreditamos que a geografia não fez por menos. Pesquisas mais recentes sobre a SGRJ7
também apontam para a vinculação da geografia com o projeto nacional. Neste estudo, comungando
com tal hipótese, esperamos compreender melhor a articulação entre o significado da geografia no
Brasil em fins do Império e a política nacional.
O estudo da geografia na cidade do Rio de Janeiro, em fins do século XIX, tinha um gosto diferente,
apimentado tanto pela questão da inusitada proliferação de grêmios em uma mesma cidade, quanto
pela cisão no interior da Seção. Afinal, se a geografia esteve atrelada a um projeto para a nação, como
pensa a historiografia, cabe responder o que então separava os institutos e qual a razão da divisão no
interior da Seção.
Acredita-se que a origem dessa multiplicação de grêmios esteja calcada nas divergências quanto
à concepção de geografia nacional, mais precisamente quanto à idéia de nação. Não se descurou, no
entanto, de outras possibilidades, relativas às questões que sacudiram o Império nos seus momentos
finais, como o abolicionismo e o movimento republicano.
Sendo assim, na busca de um enredo coerente para essa história e levando-se em conta que a
filial da Sociedade de Geografia de Lisboa constituiu-se como ponto de interseção de várias tradições
de geografia, procedemos ao exame do periódico publicado por essa associação. Nesse processo de
interpretação, no entanto, foi necessário ultrapassar o texto da Revista, pois, em muitos casos, o nexo
das geografias só se fez nos fios da memória e das biografias daqueles que nela escreviam, agentes da
política em primeira instância.
A Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil
Reunidos na legação de Portugal no Rio, então residência do visconde de São Januário, vindo ao Brasil com
as instruções e credenciais necessárias fornecidas pela Sociedade de Geografia de Lisboa, 14 sócios correspondentes
dessa Sociedade, dentre barões, viscondes, generais e doutores, constituíram a Seção na cidade do Rio de Janeiro8.
No discurso proferido durante a reunião de criação da Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa
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no Brasil, o visconde de São Januário9, em clara alusão às aflições acerca das disputas colonialistas no
continente africano, afirmou o desejo de Portugal de não ficar atrás no “certame em que se empenhava
o mundo civilizado” [...] “o grande movimento europeu para as grandes descobertas em África onde os
problemas sociais e científicos poderiam encontrar sua verdadeira solução”10.
Suas palavras revelaram os objetivos da matriz em Portugal, preconizando “a exploração portuguesa
em África”, missão em andamento tendo em vista o fato de que alguns associados já estavam “percorrendo
esse vasto continente, empreendendo importantes trabalhos de descobertas e reconhecimentos,
estudando principalmente as relações dos vastos sistemas hidrográficos ocidentais e
orientais da África equatorial e austral”.
Abordando a iniciativa do rei Leopoldo II11, da Bélgica, na tarefa de “abrir o continente africano à
civilização européia e de extinguir o tráfico da escravatura”, o cônsul reconheceu ser essa uma tarefa
gloriosa e concluiu ser indispensável para Portugal aumentar o número de expedições, tendo em vista
os fins enumerados.
Escorado em argumentos acerca do universalismo da ciência na batalha do progresso, capaz de
irmanar sócios de nacionalidades diferentes, verdadeira preleção acerca dos benefícios advindos da
participação da Sociedade de Geografia de Lisboa na política colonial portuguesa de manutenção dos
territórios africanos foi destilada.
O visconde anunciou ainda a criação, por Portugal, de um fundo africano destinado a promover
explorações naquele continente. Para fomentar tais iniciativas, prosseguiu, a Sociedade de Geografia
de Lisboa “resolveu organizar seções nas localidades onde houvesse mais de vinte sócios”. De forma
vaga, concluiu que as seções deveriam executar “todos os trabalhos relativos ao fim que se tem em
vista, a sua publicação para utilidade pública e a coadjuvação recíproca”12.
A cooperação13 proposta por Januário foi de imediato aceita entre os presentes, elegendo-se logo
a seguir, por aclamação, o primeiro presidente da instituição recém-criada, o senador Cândido Mendes
de Almeida14. Os demais membros da diretoria foram eleitos: Henrique Pedro Carlos de Beaurepaire
Rohan15 e o visconde de Borges Castro no cargo da vice-presidência, enquanto Francisco Maria
Cordeiro16 e o barão de Teffé17 figuraram como primeiros secretários.
Durante os seus três primeiros anos de vida, a Seção esteve em função da sua própria organização
administrativa, envolvida com a redação e aprovação dos estatutos, regimento interno, firmando a sua
estabilidade. No mais das vezes, os trabalhos da Seção se limitaram às comunicações do senador Cândido
Mendes de Almeida sobre as novidades geográficas e o movimento civilizador das expedições
geográficas; nesse tempo, houve apenas uma conferência do barão de Teffé e uma leitura do tenente
J. M. Albuquerque Bloem18.
O quarto ano (1881) foi, todavia, marcante: se, por um lado, realizou-se a visita do festejado
explorador português Alexandre de Serpa Pinto19 e o lançamento da Revista da Seção, por outro houve
o cisma entre os grupos que sonharam com um grêmio nacional e aqueles que permaneceram fiéis à
proposta inicial, mantendo a Seção apenas como filial de Lisboa. O episódio em tela culminou com o
fracasso da iniciativa e um saldo de divisões entre aqueles que recuaram de seus intentos, após a
reação negativa de Lisboa diante do projeto, e os associados que a deixaram para, dois anos mais tarde,
finalmente, tornar efetiva a criação da SGRJ20. No entanto, em
sessões de honra voltaram a ser organizadas.
Os signatários da ata de criação da filial compunham um grupo bastante uniforme quanto à
posição social: quase todos pertenciam à elite fluminense21, variando quanto ao título nobiliárquico,
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patente ou armas; constando dentre eles, a exemplo do visconde de Mattosinhos22, Emílio Zaluar23 e
Boaventura Gonçalves Roque24, personalidades da colônia portuguesa radicada no Rio.
A formação profissional de grande parte do grupo fundador também não se distanciava daquelas
predominantes entre membros da elite do Império. Assim, a medicina se fez representar pelo barão de
Ramiz25; a engenharia, por militares como o visconde de Beaurepaire Rohan, e, por fim, as “gentes do
direito”, como a destacada figura do senador Cândido Mendes, bacharel em ciências jurídicas e sociais.
No âmbito dos demais associados, encontra-se um espectro largo de opções ideológicas, como o
abolicionismo de Ângelo Agostini26; o pensamento de Ramalho Ortigão, manifestamente favorável à
continuidade da escravidão27; as tendências liberais de André Rebouças28; o catolicismo dedicado de
Cândido Mendes de Almeida, filiado ao partido conservador; o monarquismo convicto de Carlos
Maximiano Pimenta de Laet29 e o pragmatismo do barão de Teffé, prestando serviços tanto ao Império
quanto à República.
Em
de um terço de seus membros transitou também no IHGB e na SGRJ.
O sucesso da Seção parecia repetir o de outras instituições. A grande adesão a estabelecimentos
do gênero muitas vezes revelava o anseio por trocas de experiências e negócios30, não se podendo
ignorar a utilidade desses grêmios no âmbito das relações clientelísticas, tão presentes na Corte imperial.
Como as suas congêneres, a Seção era um instituto fortemente atrelado a D. Pedro II, não por acaso seu
protetor e sócio honorário. De “Sua Majestade” dependiam nomeações, títulos de nobreza etc.
A listagem dos filiados da Seção em 1885 incluiu nomes como Machado de Assis e Benjamin
Constant, o que só fez confirmar o prestígio e o perfil eclético da Seção e, possivelmente, de sua geografia.
A elite fluminense – grupo diversificado, se pensarmos nas suas atividades, interesses científicos e
perfil político – aninhava-se em organizações como a Seção, para além de suas ambições pessoais,
pois tinham planos para o país.
Para entender o significado da geografia e seu sentido frente à política de fins do Império, será
preciso analisar a Revista publicada pela Seção.
A Revista da Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil
Ao longo do período em que circulou, a estrutura da Revista pouco mudou, ainda que as diretorias31
variassem. A coleção de periódicos intitulada Revista Mensal da Seção da Sociedade de Geografia de
Lisboa no Brasil (RSSGL), lançada pela Seção em abril de 1881, teve sua edição interrompida durante
todo o ano seguinte, para ser retomada em 1883, mantendo-se com certa regularidade até o início de
1886, ano da última publicação de que se tem notícia.
Atingindo em média dois números anuais, não fez jus à denominação ‘mensal’. Assim, em setembro
de 1885, quando se inicia a segunda série, essa palavra foi suprimida de seu título. Freqüentemente,
palestras e artigos eram publicados em partes, de modo a render vários números, distribuídos por
diferentes fascículos. Ao final de um período – delimitado provavelmente em função de decisões
acertadas no âmbito da redação com objetivos de se programarem novas diretrizes à Revista – obtinhase
a série. Nesse caso, tivemos duas séries: a primeira, composta das revistas editadas entre 1881 e
fevereiro de 1885, e a segunda, com os fascículos publicados de setembro de 1885 até janeiro de 1886.
Sobre os assinantes e leitores do periódico, pouco se apurou: havia um público garantido, formado
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nas bibliotecas pertencentes aos grêmios, como também aqueles com os quais a Seção fazia permuta
de exemplares – ou seja, os próprios filiados da Seção ou a estes relacionados. Certamente, a imperatriz
Teresa Cristina foi umas das leitoras, pois a coleção encontrada no IHGB, uma série especial, com capa
de luxo, pertenceu à personalidade em questão.
A partir da segunda série e, aparentemente, acompanhando a própria sofisticação da Seção, que
passou a se organizar em subseções, houve a inclusão de resumos em francês dos artigos, ao fim de
cada fascículo. Atribuímos a inclusão desses resumos às pretensões de se obter um alcance maior para
a Revista; afinal, a Seção publicava notícias de sociedades de geografia francesas, traduzindo seus
artigos, e com elas trocava publicações.
Via de regra, cada periódico se compunha de “Notas da Redação” ou “Declaração”, apresentando,
comentando, prometendo regularidade, ineditismo e novos fascículos, funcionando, assim, como
pronunciamento da equipe de redação sobre a Revista; “Sumário”; artigos; seção intitulada “Crônica
Geográfica”32, contendo inúmeras notas sobre temas do movimento geográfico mundial e, ao final, o
“Expediente”, indicando usualmente publicações recebidas pela Seção ou por ela enviadas para outras
instituições, a incluir por vezes comentário bibliográfico.
Não fugindo ao ecletismo da geografia – generosa mãe, sempre disposta a abraçar todos os temas
– as discussões e artigos apresentam um amplo leque temático, versando sobre assuntos aparentemente
tão díspares quanto a adoção de um meridiano único, a fauna e a flora brasileiras, a glótica, o tupi,
a construção do Canal do Panamá, escavações de cidades na Babilônia, múmias no Egito etc.
Poucas foram as vezes em que se contou com ilustrações, à exceção do relato da expedição de
Ladislau Netto33, quando foram reproduzidos desenhos do autor. Somente em alguns raros momentos,
quando da inclusão de atas de reuniões extraordinárias tratando de posse de diretorias, homenagens a
expositores convidados, como também em algumas crônicas, consegue-se entrever os bastidores da
Seção. Nas suas linhas gerais, os pronunciamentos da Redação são comedidos e escassas são as transcrições
de opiniões.
A rigor, considerando-se somente os títulos listados nos sumários das revistas, não se detectariam
alterações passíveis de serem consideradas como fases distintas do periódico, sob qualquer
aspecto; afinal, os temas parecem estar distribuídos de forma a contemplar os objetivos explicitados
quando da criação da Seção portuguesa: engajamento no movimento geográfico mundial, fundamentalmente
a exploração do continente africano, e dados relativos ao território brasileiro.
Entretanto, ao olharmos com mais atenção a distribuição dos temas, tendo em vista a região
abordada e as diretorias da Seção e da Revista, conseguimos demarcar três fases.
Na primeira delas, relativa a 1881, com o Barão de Teffé na presidência do grêmio e Fernando
Mendes como redator em chefe34, metade dos títulos focalizou o Brasil, enquanto os demais pontos do
índice se distribuíam entre África, América Latina e demais partes do mundo (Gráfico 1).